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terça-feira, agosto 16, 2005

O salto paradigmático

Desde o advento da ciência moderna, a concepção de mundo reducionista tem prevalecido não apenas no que diz respeito á experimentação científica, mas igualmente ao comportamento e a cosmovisão de toda a sociedade ocidental. Ela tem sido nosso “credo”, a base de nossos pressupostos teóricos durante anos. A revolução de 1500-1600 não apenas afetou todos os campos da ciência como também mudou as técnicas de investigação, os objetivos estabelecidos pelo cientista e o papel que cabia à ciência desempenhar na filosofia e na própria sociedade. Foi uma modificação geral no modo pelo qual o homem via a si mesmo e a realidade externa, e não apenas uma transformação do pensamento científico.
Com a revolução copérnica da astronomia, e a derrocada da visão de mundo aristotélica, o elementarismo insurge contra a filosofia escolástica e seu método dedutivo, doravante, partindo dos elementos para o todo. Consoante o desenvolvimento dos vários campos científicos existentes, surgem novas disciplinas, e assim a física matemática toma corpo, através das idéias de Issac Newton.
Na filosofia, o Discurso do método de Descartes, levara os homens de sabedoria a repensar os fundamentos de toda uma época, possibilitando o surgimento de novos paradigmas.
Estabelecido, a princípio, pelas idéias de Newton e René Descartes na física e na filosofia, o reducionismo mecanicista preconizara um universo estático, sustentado por leis da mecânica e explicado como tal. O mundo físico, assim como uma máquina, seria descrito a partir de seus componentes básicos os quais, acreditava-se, responderiam pelo conhecimento do todo. A ampla aplicabilidade do novo método em favor do desenvolvimento científico, levara as ciências humanas a tomá-lo como modelo, não obstante as diferenças, no uso de pressupostos semelhantes. O físico Fritjfof Capra oferece-nos mais detalhes:

“Desde o século XVII a física tem sido o exemplo brilhante de uma ciência ´exata´, servindo como modelo para todas as outras ciências. Durante dois séculos e meio os físicos se utilizaram de uma visão mecanicista de mundo [...] visto como uma profusão de objetos separados montados numa gigantesca máquina. ...acreditava-se que os fenômenos complexos podiam ser sempre entendidos desde que se os reduzisse a seus componentes básicos e se investigasse os mecanismos através dos quais esses componentes interagem [...]. As outras ciências aceitaram os pontos de vista mecanicista e reducionista da física clássica como a descrição correta da realidade [...]. Os psicólogos, sociólogos e economistas, ao tentarem ser científicos, sempre se voltaram naturalmente para os conceitos básicos da física newtoniana (Capra, 1987, pág.44).

A visão de mundo arcaica tornara-se um engodo. De fato, a dedução, e não o experimento determinara, por séculos, o que deveria ser aceito quanto ao mundo natural e seus processos. A curiosa noção de testar a teoria empiricamente ainda não tinha adquirido raízes. Não é para surpreender, portanto, o fato de que a tecnologia avançasse tão lentamente no período medieval.
Os filósofos iluministas recusaram-se veementemente a formular hipóteses de cunho metafísico sobre a natureza, como o era na idade média. “O programa do iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a de dissolver os mitos e anular a imaginação por meio do saber” (Adorno, 2005, pág.17). O Teocentrismo cedera lugar ao império humano; a renascença reflorescera o antropocentrismo grego, e Deus, tal como uma muleta, fora abandonado pelo caminho. Nos dizeres de Voltaire, em sua peça Édipo:

“Confiemos em nós mesmos, olhemos com os nossos próprios olhos; Sejam estes nossos oráculos, nossas trípodes e nossos deuses” (citado em Durant, 1962, pág. 200).

O mundo escolástico fora soterrado pelo desenvolvimento mil vezes mais seguro e mais palpável dos telescópios, da navegação e do espírito racional. Era possível agora calcular, pesar, medir e observar. O empirismo invadira o mundo científico e a mensuração, a objetividade e a experimentação pragmática, tornaram-se os marcadores indeléveis de um novo tempo, uma nova sociedade, sustentada pela fé no cientificismo. O espírito moderno, como que numa contra-reação ao holismo medieval, restringira-se aos fatos, aos dados empíricos, e por meio deles formulara suas teorias indutivas. Cada homem de ciência definira seu escopo, se a física, se a biologia, se a medicina, etc. fragmentando-se e afastando-se da idéia de totalidade. Mas ao mesmo tempo, curiosamente, mantinha-se aceso o sonho manifesto de, através de um mínimo ponto, abranger todo o universo. Nas palavras de Will Durant:

“O conhecimento humano tornou-se muito grande para a mente humana. O que ficou foi o especialista científico que ´conhece mais e mais a respeito de menos e menos`. [...] O especialista armou-se de viseiras para restringir o campo da visão; some-se o mundo para que fique um pontinho só a esmiuçar. [...] ´Fatos` substituíram a compreensão; e o conhecimento, cindido em mil partes isoladas, não mais deu como resultado sabedoria. Cada ciência e cada ramo da filosofia geraram uma terminologia técnica apenas inteligível para os iniciados; quanto mais o homem aprendia sobre o mundo menos se achava apto a exprimir aos outros a coisa que tinha aprendido” (Durant, 1962, págs. 5 e 6).

A especialização trouxe um avanço nunca antes esperado. O uso a esmo da matemática e do método estatístico, bem como dos pressupostos da física newtoniana, fortaleceram a investigação sobre a natureza. Com o progresso tecnológico e intelectual, foi possível libertar o homem da estagnação obscurantista, e reaver o tempo perdido.
A rápida expansão cientificista, porém, nos ofuscara a crítica, e o crescimento informacional absurdo reduzira ainda mais o campo das averiguações. Cada qual trabalhando isoladamente, envolto em seu objeto, perdera de vista os efeitos em escala global. A síntese fora execrada e o reducionismo tornou-se a lei. Os problemas mundiais pareciam agora insolúveis, vistos de maneira elementar. A ciência já não poderia conter o expansionismo, e num interessante revés, libertos do medo mágico, tornamo-nos vítimas de uma nova armadilha: o progresso da dominação técnica. A indústria cultural utilizara-se dos recursos provenientes do desenvolvimento científico para alienar as massas, e assim o crescimento econômico capitalista juntara-se à ciência com o mesmo intuito de controlar e expandir-se ainda mais. Paralelamente, numa tentativa funesta, cindimos homem e natureza, posicionando-nos contra o espírito ecológico, inimigo da evolução desenfreada:

“Tendo dominado o ambiente ecológico, parece que o homem deslocou as questões de sua sobrevivência para o plano das relações com seus semelhantes. E aí também parece que a contribuição das ciências não tem sido suficientes ou adequadas para afastar de nossa civilização o risco real de sua própria extinção” (Vasconcellos, 2002, pág.17).

As guerras mundiais, o nazismo e o stalinismo nos provaram uma falha gravíssima no racionalismo iluminista. Que luzes se não a de canhões e de tiros alvejando pelo ar? Que glórias senão a de uma vitória sobre a natureza e, portanto, sobre nós mesmos? A razão, o logos, outrora nosso mártir, nos traíra. Lá estava agora a fundamentar a luta entre povos inteiros, em prol de uma “verdade universal”.
A guerra fria e a corrida espacial nos trouxera o estranho paradoxo do homem na lua, envolto pelo sonho de uma civilização inter-estelar, enquanto a humanidade terrena lograva libertar-se da extinção unânime, presa de uma decisão internacional tão fria quanto o aço das indústrias.
Mas a simples queda do muro de Berlim não fora o suficiente para instaurar a paz. A ameaça persistira, e nos atuais conflitos entre ocidente e oriente, reside o perigo de novas perdas.
Por de trás da guerra, há sempre o cientificismo, a fornecer-lhe o combustível necessário. O reducionismo das teorias atingira o pensamento das massas, e hoje nos sentimos separados de todo o resto. A fragmentação do método levou à fragmentação humana, e a indução gerou o nacionalismo pretensioso, disposto a universalizar-se como verdade de todos, tal qual desejam os EUA.
O tempo, todavia, reservara-nos surpresas insuspeitadas. A história, como que girando sobre si mesma, resgatara a visão de mundo totalizante, não mais ancorada no medievalismo dogmático, mas no convés da própria ciência. Assim, o que seria apenas uma grave mudança no pensamento científico, tornou-se verdadeira revolução na maneira como compreendemo-nos a nós mesmos em relação à natureza. Vejamos a seguir.

1.1. O conceito de paradigma e as descobertas da física moderna

De acordo com o filósofo Thomas Kuhn, a ciência não segue um progresso contínuo e ininterrupto. Seu desenvolvimento se dá através de “saltos” ou revoluções que determinam paradigmas específicos, os quais delineiam toda a série de pesquisas em um dado momento histórico (Khun, 1970). O termo paradigma vem do grego (paradeigma) e significa “Padrão”. Este forma não só um modelo sob o qual os pesquisadores estruturam suas hipóteses de trabalho, mas também toda uma modalidade de pensamento sócio-cultural, que perdura mais ou menos tempo, até finalmente tornar-se um entrave. Khun define os paradigmas como estruturas conceituais e temporais implícitas nas teorias científicas, por representarem toda uma forma de compreensão e raciocínio, subjacente às pesquisas.
Atualmente, ao que parece, como quando da renascença e da revolução copérnica, uma profunda mudança paradigmática vem afetando inúmeros setores. A insuficiência e limitação do reducionismo têm-se mostrado mais claras, no que tange a uma série de fatores, inabordáveis de um ponto de vista fragmentário ou indutivo. Como afirmara o biofísico Ludwig Von Bertalanffy:

“Podemos afiançar, como característica da ciência moderna, que o plano das unidades isoláveis agindo numa causalidade de um sentido revelou-se insuficiente. Daí o aparecimento, em todos os campos da ciência, de noções como totalidade, holismo, organísmico, gestalt, etc; todos os quais significam que, em última instância, precisamos pensar em função de sistemas de elementos em mútua interação” (Bertalanffy, 1997).

A fenomenologia, e principalmente a abordagem sistêmica, nos mostraram que o todo possui uma dinâmica própria, diferentemente da simples soma de suas partes. As pesquisas em Cibernética, psicologia da Gestalt, e as descobertas da física moderna nos trouxeram de volta a uma noção de mundo totalizante. Os instrumentos, cada vez mais precisos, descobriram o que o universo não era: as leis de Newton provaram ser aproximadamente verdadeiras. O universo tido com algo facilmente compreensível e realmente bastante simples, de repente revelou-se aos físicos, um tanto mais estranho e complexo do que imaginavam. Conquanto uma grande parte das contribuições trazidas pela teoria clássica tenha se mantido, a visão de mundo reducionista mostrara-se incapaz de fornecer uma melhor descrição da realidade. Destarte, a física passara, aos poucos, de um ponto de vista fragmentário, para a idéia cada vez mais próxima de um universo dinâmico, em que os elementos interagem, de modo a originar um todo:

“A concepção do universo como uma rede interligada de relações é um dos dois temas tratados com maior freqüência na física moderna. O outro tema é a compreensão de que a rede cósmica é intrinsecamente dinâmica [...]. As propriedades de seus modelos básicos, as partículas subatômicas, só podem ser entendidas num contexto dinâmico, em termos de movimento, interação e transformação (Capra, 1987, pág. 82).

Essa importante descoberta derivara de outras constatações não menos cruciais, como o princípio da incerteza, atribuído à Heinsenberg. Ao estudarem partículas ínfimas como os átomos, os físicos depararam-se com paradoxos que não conseguiam resolver de maneira objetiva, ao mesmo tempo em que não viam como atribuí-los à própria natureza. Cada vez que procuravam descrever o movimento de uma partícula, o faziam de maneira oposta, o que levou Heinsenberg à conclusão de que é impossível separar sujeito e objeto, contrariando a clássica divisão cartesiana. A mente do observador influi na concepção que se tem da partícula, e a altera indefinidamente. Não haveria, então, como definir de modo exato o movimento de um elétron, por exemplo, que ora pode se manifestar como onda, para noutro instante manifestar-se como partícula, de fato:

“Se formulo uma pergunta sobre a partícula, ele [o elétron] me dá uma resposta sobre a partícula; se faço uma pergunta sobre a onda, ele me dá uma resposta sobre a onda. O elétron não possui propriedades objetivas independentes da minha mente. Na física atômica, não pode mais ser mantida a nítida divisão cartesiana entre matéria e mente, entre o observado e o observador. Nunca podemos falar sobre a natureza sem, ao mesmo tempo, falarmos sobre nós mesmos.” (Capra, 1987, pág. 81).

A história nos pregara uma peça: a exploração do meio ambiente “em nome da ciência” provou ser uma das nossas maiores mentiras! O observador influencia sempre, e modifica também o observado. O universo e seus habitantes estão inextricavelmente ligados num todo: tudo é relacionado. A separação entre homem e meio ambiente é uma ilusão que criamos a nós próprios! Nenhum cientista encontra-se inteiramente livre de responsabilidades pelas experiências que efetua, e a idéia de neutralidade, presente na ciência oficial, tornou-se um mito:

“Ao transcender a divisão cartesiana, a física moderna não só invalidou o ideal clássico de uma descrição objetiva da natureza, mas também desafiou o mito da ciência isenta de valores. Os modelos que os cientistas observam na natureza, estão intimamente relacionados com os modelos em sua mente – com seus conceitos, pensamentos e valores. Assim, os resultados científicos que eles e as aplicações tecnológicas que investigam serão condicionados por sua estrutura mental. Embora muitas de suas detalhadas pesquisas não dependam explicitamente do seu sistema de valores, o paradigma maior dentro do qual essas pesquisas são levadas a efeito nunca está isento de valores. Portanto, os cientistas são responsáveis por suas pesquisas, intelectual e moralmente.” (Capra, 1987, pág.82).

As pesquisas subseqüentes, e as teorias de físicos renomados como Niels Bohr e Max Plank, demonstraram a insuficiência dos postulados anteriores, e a necessidade de se observar um sistema, não mais em termos de partes independentes, mas de uma visão da totalidade. Questões como o princípio da causalidade, a noção espaço-temporal, o conceito de matéria e energia, a concepção de mundo mecânica e fragmentária, a redução dos fenômenos a processos meramente quantitativos e mesmo a cisão entre sujeito e objeto tiveram de ser repensadas.
Os físicos perceberam que não havia como oferecer uma descrição exata e objetiva dos fenômenos de que estavam tratando. Era preciso contentar-se com modelos hipotéticos, sabendo que representavam meramente um mapa, e não o território em si. A ciência tradicional tornou-se “inadequada para lidarmos com situações complexas, instáveis, que exigem que reconheçamos nossa própria participação no curso dos acontecimentos” (Vasconcellos, 2002, pág.22).
A revolução da física quântica nos trouxe assim, de volta a profundas reflexões sobre o alcance do método científico. Até que ponto o modelo newtoniano oferece uma base segura às várias disciplinas e quais os limites dessa visão para com a ciência em geral? Visto que uma considerável parcela mantém-se ainda estruturada conforme o ponto de vista newtoniano, quais as limitações que se apresentam, nos respectivos contextos? Em suas obras, Capra tem tratado dessas repercussões, e seus estudos revelam uma deficiência tão grande quanto à encontrada na física clássica.

“Estou afirmando que estamos em meio a uma mudança de paradigma; o velho paradigma é a visão de mundo cartesiana, newtoniana, a visão de mundo mecanicista. O novo paradigma é o holístico, a visão de mundo ecológica. Precisamos dessa mudança de percepção. Nossa sociedade, nossas corporações, nossa economia, nossa tecnologia, nossa política, estão todas estruturadas de acordo com o velho paradigma cartesiano. Precisamos de mudança” (Wilber. pág.225).